No sábado de 24 de janeiro, a chegada de um voo de repatriação com 88 brasileiros deportados dos EUA desatou reação do governo Lula após o grupo desembarcar com algemas nas mãos e correntes nos pés. A aeronave pousou em Manaus (AM) devido a problemas técnicos, e, diante da situação, o governo determinou que a Força Aérea Brasileira (FAB) concluísse o trajeto até Belo Horizonte (MG). O Ministério da Justiça falou em “flagrante desrespeito aos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros”, e o governo brasileiro convocou o encarregado de negócios dos EUA no Brasil, Gabriel Escobar, para pedir explicações.

No ano passado, o número de brasileiros deportados dos EUA, no governo do então presidente Joe Biden, foi o maior registrado em três anos, chegando a 1.648 pessoas em 16 voos. Três brasileiros deportados relataram ao GLOBO os meandros do controle de imigração e as idas e vindas da burocracia para enviá-los de volta ao país.

Salvo por garrafa pet

Embora o caminho mais penoso seja o percurso para cruzar a fronteira, o contato com autoridades e a detenção são o marco de uma nova fase de incerteza em solo estrangeiro. Transferência entre penitenciárias, “bicos” na prisão para financiar ligações para a família e a desinformação sobre a possibilidade de audiências são algumas das dificuldades apontadas.

Assim como os deportados algemados e acorrentados que chegaram a Manaus, Leonardo Oliveira, de 42 anos, diz ter desembarcado em Belo Horizonte da mesma forma em 20 de dezembro. Antes, chegou a ficar preso em Texas e Louisiana.

O brasileiro conta que há duas maneiras de entrar no território americano sem visto prévio: escondido da polícia ou por um pedido de asilo. Ele seguiu a segunda opção, embora os EUA não facilitem a permanência de brasileiros nessa condição. Isso só acontece em casos muito específicos de perseguição, como fuga da violência, após entrevista detalhada sobre a história do requerente. Segundo Leonardo, após ter se entregado às autoridades, teve de apresentar justificativas para o pedido de asilo. O brasileiro, porém, não conseguiu uma audiência para dar prosseguimento ao pedido.

A penitenciária à qual Leonardo foi enviado abrigava mais de cem detentos. Lá, ele recebia três refeições por dia e itens de higiene. Ele ainda passou por uma transferência para ficar em outro presídio próximo dos voos de deportação.

— Eu tinha direito a saúde, psicólogo, assistência psiquiátrica, banho de sol. Era um tratamento digno, mas a comida era racionada.

Ao entrar no sistema penitenciário americano, Leonardo teve todos os seus documentos confiscados, seus antecedentes conferidos e sua digital e voz registradas. O dinheiro que possuía, conta, foi para uma carteira digital para comprar comida extra ou cartões de telefone no presídio. Ele podia receber dinheiro de familiares no Brasil, e todas as movimentações financeiras eram feitas por tablet.

— Coloquei a mochila nas costas e saí de ônibus (do Brasil). Eu peguei carona, passei por 11 países e entrei nos Estados Unidos pelo México. Meu processo de asilo foi negado, e acabei deportado após 65 dias.

Antes de se apresentar às autoridades, Leonardo foi salvo por uma garrafa pet amarrada ao peito durante a travessia do Rio Grande, no México. Segundo ele, o objeto foi o único responsável por salvá-lo do afogamento. Ao seu lado, segundo o relato, um pai com uma filha criança não tiveram a mesma sorte e acabaram morrendo.

Leonardo chegou aos EUA depois de enfrentar a depressão e complicações financeiras no Brasil. Na adolescência, viveu na Espanha por um tempo e não tinha planos para se tornar emigrante novamente, até esbarrar nas redes sociais com pessoas que estavam atravessando a fronteira dos EUA com sucesso. Durante o périplo recente, gravou vídeos no YouTube narrando as dificuldades.

Já Arthur, de 37 anos, que preferiu se identificar apenas com o primeiro nome, levou oito meses de viagem até chegar ao controle de fronteira dos EUA com o México, onde decidiu se entregar. Para chegar até lá, ele precisou fazer trajetos de ônibus e bicicleta, além de pegar carona. Passou por países como Bolívia, Peru e Panamá.

Ala menos barra-pesada

Arthur saiu do Brasil com apenas R$ 800 no bolso e precisou arrumar trabalhos temporários para conseguir sobreviver. Sua ideia nos EUA era trabalhar com construção até conseguir dinheiro para se especializar em eletrônica. Para isso, ficou dias sem dinheiro, água e comida.

Ao chegar para a custódia, de responsabilidade da ICE, agência de imigração americana, Arthur precisou entregar todos os objetos pessoais, incluindo as roupas e, segundo ele, tudo foi jogado no lixo. Ele recebeu um moletom cinza e um sapato de algodão azul. O brasileiro conta que estava receoso ao chegar ao presídio, mas que logo entendeu que estava numa ala apenas com imigrantes. Segundo ele, porém, isso não é regra.

— Quando você entra cruzando o rio, como eu, você é considerado criminoso, mas de baixa periculosidade, e aí ganha o uniforme azul. No meu caso, me entreguei voluntariamente. Mas, se o imigrante tenta entrar escondido e reage à abordagem policial de algum jeito, ele pode entrar com registro de violência física e usar um uniforme indicando mais periculosidade, o laranja. Tinha ala com uniforme vermelho, que é mais perigoso, e preto, que é quem praticou homicídio ou outros crimes mais pesados.

Em poucos dias, Arthur logo entendeu a rotina do local e o que era necessário para ficar tranquilo nos próximos dias. O bom comportamento dos colegas de cela dava direito a idas ao pátio, onde era possível jogar futebol. Ao longo do dia, os detentos tinham direito a três refeições por dia e às 22h as luzes eram apagadas. Duas vezes por semana, a penitenciária abria uma espécie de vendinha, onde era possível comprar itens de necessidade básica, incluindo cartões de orelhão.

Em pouco tempo, Arthur entendeu a rotina do local e o que era necessário para ficar tranquilo nos próximos dias. O bom comportamento dos colegas de cela dava direito a idas ao pátio, onde era possível jogar futebol. Os detentos tinham direito a três refeições por dia e às 22h as luzes eram apagadas. Duas vezes por semana, a penitenciária abria uma espécie de vendinha, onde era possível comprar itens de necessidade básica, incluindo cartões de orelhão.

Para conseguir dinheiro, Arthur prestava serviços de tradução para os detentos que não falavam inglês. Além disso, havia a possibilidade de envio de dinheiro por familiares e acesso a eventuais quantias apreendidas no momento da prisão.

— Uma ligação era caríssima, US$ 0,80 por minuto. Mas eu me virava fazendo meus serviços de tradução.

Arthur diz que não teve direito a uma audiência para tentar ficar nos EUA e afirma que a decisão foi arbitrária.

— Me perguntaram quem eu era, minha religião, sexualidade, mas o policial pôs o que quis no documento. Foi um papel igual para todo mundo que estava entrando comigo. Me negaram verbalmente a audiência, falaram que se eu quisesse tinha que arrumar um advogado. Foi arbitrário, mas eu sabia do risco.

O momento mais perigoso ocorreu antes da detenção, segundo ele, quando pegou um trem e foi descoberto pelos trabalhadores da ferrovia e por agentes de imigração.

— Eles tentavam pegar a gente, puseram arma na minha cabeça, ameaçaram me jogar do trem. Eu pulei do trem, corri para o deserto e me enfiei 5 km no meio dos cactos. Desistiram de ir atrás de mim, aí andei mais 10 km até chegar em uma rodovia, onde peguei um carro — conta.

Quatro centros de detenção

Outro que tentou a sorte nos EUA, mas foi deportado, foi Wemersson Fontes, de 28 anos, que chegou ao Brasil acorrentado nos pés, na barriga e nas mãos, mas foi solto cerca de 20 minutos antes do pouso. A prática é apontada como recorrente por especialistas. Natural de Minas Gerais, o eletricista decidiu ir para os EUA para juntar dinheiro trabalhando com pinturas de casas.

Ao se entregar na fronteira, Wemersson teve o seu pedido de asilo negado e foi levado para quatro centros de detenções até conseguir voltar para o Brasil. Em todos os seus deslocamentos, ele ficou acorrentado. Na fronteira, ele relata que a refeição era escassa, com pouco espaço para dormir, mas que nas outras três detenções se alimentou de maneira satisfatória.

— Eram muitas pessoas, não tinha colchão para todo mundo e muita gente dormia em cobertor térmico. Eu comia barrinha de cereal, água, às vezes um suco. Nos outros centros de detenção davam hambúrguer, batata frita, mas a gente tinha espaço aberto pra fazer esporte, telefone e até videogame.

Ele conta que foi algemado em todos os seus deslocamentos e durante todo o voo para o Brasil. A exceção era quando ia ao banheiro. Seu voo, afirma, trouxe de volta cerca de 80 brasileiros, com apenas três agentes americanos a bordo.

O Globo
Limpa Mil