Desde que retornou à Casa Branca, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, não mediu esforços para impor sua dura agenda anti-imigração no país. Mas uma medida, em especial, ultrapassou fronteiras: o congelamento de quase toda ajuda externa americana pelos próximos três meses — parte de um amplo esforço de revisão do Departamento de Estado para garantir que as iniciativas estejam alinhadas aos interesses trumpistas. O impacto foi imediato, inclusive no Brasil. Para analistas ouvidos pelo GLOBO, o corte aprofundará não só a crise migratória global como possivelmente terá um efeito rebote: aumentar o fluxo de migrantes em direção aos EUA. No ano passado, o número de pessoas deslocadas à força bateu o recorde de 122 milhões, segundo a ONU, mais que o dobro do registrado há 10 anos.
Anunciada há pouco mais de uma semana, a ordem inicialmente isentava do corte valores enviados a Israel e ao Egito e para fundos alimentares. Na terça-feira, o secretário de Estado, Marco Rubio, assinou um memorando isentando “programas essenciais para salvar vidas” que custeiem medicamentos, vacinas, serviços médicos e abrigos.
Os EUA são os principais fornecedores de ajuda humanitária do mundo, embora os valores destinados não cheguem a 1% do seu Orçamento federal. Em 2023, dos US$ 13,8 bilhões gastos com ajuda humanitária, US$ 9,8 bilhões foram usados pela Agência para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) e US$ 4 bilhões pelo Escritório de Refugiados e Imigrantes (PRM). Segundo o memorando, a Assistência à Migração e Refúgio (MRA) fornecida pelo PRM — que atende o Brasil, quinto maior beneficiário nas Américas — só continuará disponível nos próximos 90 dias para iniciativas emergenciais e de “repatriação de cidadãos”.
Segundo dados do Departamento de Estado, entre os principais beneficiários do MRA estão países como Líbano, que abriga a maior população de refugiados per capita do mundo; Turquia, que serve de “tampão” para migrantes do Oriente Médio que tentam chegar na Europa; Colômbia, principal destino de imigrantes venezuelanos e rota de passagem para os EUA pela selva de Darién; e Bangladesh, onde há o maior campo de refugiados do planeta com rohingyas que fugiram de Myanmar.
Aliados como Ucrânia e Jordânia também serão afetados, assim como afegãos que trabalharam para o governo americano durante a ocupação do país e sírios, vítimas da maior crise migratória do mundo. No continente africano, onde há a disputa por influência com a China, Etiópia e Sudão do Sul sofrerão os maiores impactos.

Impacto no Brasil
Paira a incerteza, ainda, sobre a Operação Acolhida — ecossistema que desde 2018 atende migrantes venezuelanos no Brasil, formado por entidades públicas, privadas, ONGs e as agências da ONU para Refugiados (Acnur) e para Migrações (OIM). Além de assistir venezuelanos, o programa também promove a sua interiorização, inserindo-os no mercado de trabalho de outros estados. Hoje, há mais de 500 mil venezuelanos no Brasil, terceiro principal destino na América Latina.
— Muitas dessas organizações dependem de financiamento norte-americano, de modo que o corte seguramente irá impactar a capacidade operacional desse sistema, que já opera sobrecarregado — afirma ao GLOBO Victor Del Vecchio, advogado de imigração e direitos humanos e mestre em direito internacional pela USP. — Na prática, menos interiorizações significa mais pessoas em Roraima, estado com baixa capacidade de inserção socioeconômica desse contingente. É possível que o número de migrantes em situação de rua, pobreza e miséria dispare.
Procurado pelo GLOBO, o Acnur evitou comentar os impactos diretos, mas disse em nota que “as operações no Brasil seguem vigentes, pois as fontes de financiamento de nossas atividades em prol das pessoas refugiadas são diversificadas”. No entanto, em um e-mail interno enviado por Filippo Grandi, chefe do Acnur, repercutido pelo jornal britânico Guardian, o alto comissário anunciou uma redução imediata dos gastos, vetando a contratação de funcionários, assinatura de novos contratos e viagens internacionais. No ano passado, um quinto do orçamento do Acnur veio dos EUA, cerca de US$ 2,4 bilhões.
Por sua vez, a OIM no Brasil, que deixará de receber cerca de US$ 5 milhões dos EUA durante os 90 dias de congelamento, afirmou ao GLOBO que ainda está analisando os impactos da ação. Em comunicado encaminhado a autoridades em Brasília, a agência disse que 60% dos recursos para sua operação no país são provenientes dos Estados Unidos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu bancar a iniciativa em caráter emergencial enquanto novos financiadores são buscados.
Efeito rebote
A falta de recursos para imigrantes da Venezuela também pode resvalar nos EUA. No ano passado, os venezuelanos foram a terceira nacionalidade que mais cruzou a fronteira dos EUA e há uma expectativa de intensificação do êxodo diante do recrudescimento do regime de Nicolás Maduro — que tomou posse em janeiro para um terceiro mandato depois de uma eleição acusada de fraude.
— Essa combinação do Trump de segurar recurso e dificultar a passagem na fronteira vai criar um gargalo muito grande, porque os imigrantes não vão parar de sair da Venezuela, vimos outros picos de imigração no ano passado — analisa Gabrielle Oliveira, professora de educação e migração na Universidade Harvard. — No governo Biden, as pessoas podiam pedir asilo nos EUA em países de passagem como Guatemala, Costa Rica, Panamá. Agora, elas vão ficar mais tempo nesses lugares. A fronteira americana não vai ser só com o México, vai ser a América Central inteira.
Para Vecchio, o financiamento americano “é uma forma de criar condições para que o contingente de pessoas que migra em direção aos EUA seja menor”. Segundo ele, o corte pode gerar um efeito rebote e “aumentar o número de pessoas que buscarão construir suas vidas nos EUA”.
— A América Latina é rota para migrações em direção aos Estados Unidos que têm origem tanto nos próprios países latino-americanos quanto em diversos outros, sobretudo dos continentes asiático e africano. Se confirmados, os cortes irão afetar todas essas populações que passam ou se estabelecem nesses lugares — destaca o advogado. — As fronteiras de outros países, como da Europa, podem se tornar a alternativa viável para esses fluxos estancados, de modo que é possível afirmar que a crise migratória no mundo deve piorar. A experiência nos mostra que o resultado de tornar a entrada de imigrantes mais difícil é o aumento na vulnerabilidade dos migrantes e na atividade de grupos criminosos que lucram com a imigração irregular.
Interesses americanos
De acordo com Lucas Leite, professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), a ajuda externa fornecida pelos EUA é parte central do soft power americano e remonta ao contexto da Guerra Fria, quando os EUA aprovaram o Plano Marshall para apoiar a reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra Mundial. Na época, além do interesse econômico em garantir que o continente tivesse condições de comprar os produtos da sua aquecida indústria, havia a intenção de usar a distribuição de recursos para vender uma boa imagem dos valores liberais, em contramão ao comunismo soviético. Ao longo dos anos, a estratégia foi exportada para outros países, ganhando força a partir dos anos 1960, quando foi criado o Usaid.
— Há um interesse geopolítico na ajuda humanitária. Eles não fazem isso porque são altruístas e bonzinhos. Existe ali a busca pela construção de um ordenamento que privilegie o poder americano, é uma forma de buscar atrair os países para estabelecer vínculos que possam ajudar nas trocas comerciais e garantir a estabilidade internacional — analisa Leite. — Se você assume esse lugar enquanto hegemonia, precisa assumir a responsabilidade da manutenção desse ordenamento.
Do ponto de vista doméstico, porém, a visão do povo americano sobre essa ajuda externa mudou em diferentes contextos. Segundo Leite, ela foi vista positivamente nas primeiras décadas após a Segunda Guerra, na esteira desse ideal de exportar os “bons valores”‘ como uma missão do país. Com o choque do petróleo nos anos 1970 e o neoliberalismo nos anos 1980, catapultado pelo ex-presidente Ronald Reagan (1981-1989), alimentou-se o discurso de que esse dinheiro deveria ser usado pelos EUA — uma semente da política “América primeiro” a que Trump recorre para justificar os cortes.
Embora represente uma fração mínima dos gastos, Oliveira afirma que o novo Departamento de Eficiência Governamental (DEG), comandado pelo bilionário Elon Musk, prometeu uma varredura completa nas contas públicas. Nesse sentido, a ajuda externa sai prejudicada em relação a outras instâncias tanto por não contar com lobby em Washington quanto por ser malvista pelo eleitorado republicano.
— É muito difícil cortar gastos americanos, porque dois terços do Orçamento são para seguros sociais, pensões, saúde, e cortar isso é mexer com o eleitorado. Para esse DEG, qualquer corte vale. Para o governo democrata, que se apresenta como defensor dos direitos humanos, é um problema para a sua base cortar isso. Para a base de Trump, não. — afirma Oliveira.
Agora, fica em aberto quais países serão priorizados durante os três meses de avaliação do governo. Segundo Oliveira, é possível que Trump use os fundos como moeda de troca para obter contrapartidas, mas abdicar totalmente do fornecimento é também abrir mão do controle dessas regiões, dando espaços para outros atores.