Ao lado do pai, Rick Richard, Alice, de 19 anos, diz que as lições, na infância, sobre o valor do dinheiro fizeram dela uma pessoa mais consciente| Foto: Alex Régis
O simples desejo de comprar cartinhas e figurinhas para brincar com amigos da escola, aos 7 anos de idade, fez com que a jovem Emmanuelle Richard, hoje com 22, e sua irmã, Isabelle, 23, recebessem juntas suas primeiras lições sobre o valor do dinheiro. Com dinheiro emprestado pelo pai, Richard, a juros zero, as meninas iniciaram a venda de chocolates na escola e começaram a ter seu próprio dinheiro para a compra de figurinhas, sorvetes e roupas. “Meu pai sempre tentou ensinar que as coisas vinham do nosso esforço. Para conseguirmos algo, não era tão fácil, precisávamos demonstrar que queríamos aquilo. Uma forma foi o incentivo para venda de chocolates para termos nosso próprio dinheiro”, lembram. A irmã mais nova da família, Alice, de 19 anos, tem o mesmo pensamento. “Sempre agradeço a meu pai por ter me ensinado a usar o meu dinheiro”, cita.
Desses pequenos ensinamentos, anos depois as duas jovens são independentes financeiramente e sabem, desde criança, lições básicas sobre juros, capital de giro, reinvestimentos e aplicações em ações e produtos financeiros. A realidade das meninas potiguares mostra um cenário que tem crescido exponencialmente no Brasil: de 9.099 jovens investidores registrados na Bolsa de Valores (B3) em dezembro de 2019, o número saltou para 49.353 em novembro de 2024. O avanço é de 442%.
A venda de chocolates foi apenas uma das ações empreendedoras das duas irmãs, que nasceram em Natal e cresceram no bairro do Planalto, zona Sul. A ideia era comprar cartinhas de um jogo. As meninas compravam os chocolates de uma vizinha, mas perceberam que fazer o produto era mais rentável. O pai, Richard, emprestou o dinheiro sem juros às filhas.
“Meu pai emprestou a juros zero, pegávamos os chocolates da moça e vendíamos por um preço maior. Meu pai passou um ensinamento que o dinheiro da empresa não era o nosso. Uma coisa era o dinheiro que a empresa recebia e o salário que eu me pagava. Do lucro que eu tinha, precisava tirar alguns valores: do que paguei a moça, o empréstimo do meu pai e uma parte que seria pra mim, e aí eu poderia fazer o que eu quisesse e a parte da empresa para reinvestir”, explica.
Após uma troca de escola, elas lembram que foram proibidas de vender os doces, mas não deixaram de empreender. Emmanuelle, por exemplo, passou a produzir e vender aplicativos e sites durante a adolescência. O gosto pela programação fez com que ela se formasse em Ciência da Computação aos 19 e tivesse a primeira pós-graduação em Engenharia de Dados aos 21.
Atualmente, Emmanuelle mora em São Paulo há dois anos onde trabalha numa empresa de engenharia de software. Independente financeiramente desde os 15 anos, ela cita que as lições aprendidas em casa foram fundamentais para ter o controle e noção dos seus ganhos e gastos.
“Me mudei para São Paulo sozinha. Não dependo financeiramente do meu pai desde os 15 anos graças aos ensinamentos financeiros dele e ao valor do trabalho. Me mudei para uma grande capital aos 20 anos, com custos diferentes. Tive muita confiança no que eu poderia fazer. Tenho minha reserva financeira que se acontecer algo como ficar sem emprego, precisar ajudar alguém da família ou eu mesma precisar, eu tenho minha reserva. Esse dinheiro é justamente para isso! Meu pai também ensinou isso: que todos da casa fossem fortes, porque um pilar só na casa não se sustenta”, finaliza.
Caixinhas do “ontem, do hoje e do amanhã”
O pai das jovens, Rick Richard, 51 anos, conta que o desejo de incentivar as filhas a terem seus próprios recursos sempre foi umobjetivo de criação. Pai solo, ele conta que ensinar o valor do dinheiro sempre foi um dos seus principais desafios em relação às três filhas. Atualmente empreendedor e personal dancer, ele cita que os primeiros ensinamentos para as filhas partiram de pequenas “caixinhas”, intituladas “Ontem, Hoje, e Amanhã”.
As caixinhas consistem no seguinte: a do “Ontem” é para as contas, como luz, água e internet; a do “Hoje” que é para gastos diários, como lanches, roupas, lazer; e a do “Amanhã”, para poupanças e investimentos. Além disso, Richard conta que também tinha caixas de emergência para moedas de R$ 1, R$ 0,50 e R$ 0,25 e R$ 0,10 e R$ 0,05, com o intuito de serem usadas apenas em último caso.
“Não tive modelos que me orientassem a isso. Eu que queria chegar à idade que estou, estando com a liberdade que tenho hoje. Sou pai solteiro há 10 anos, mas antes disso já tinha essa mania de investir e ter minhas coisas. Minha ideia era que quando eu chegasse perto dos 40, 50 anos, eu pudesse desacelerar. Hoje tenho minhas finanças equilibradas. E para chegar e ter essa liberdade eu precisaria que elas estivessem independentes e essa independência passa por esse cuidado financeiro. Elas teriam que ter suas fontes de renda e saber lidar com o dinheiro. Sempre ensinei, desde pequenas, a saber que dinheiro é bom, é gostoso possuir, mas não deixar ele nos possuir. Porque o dinheiro é necessário para quando estamos doentes”, lembra.
Alice Richard seguiu os passos da irmã e também trabalha com desenvolvimento de softwares e programação, sendo estagiária na área. Diferente da sua irmã Emmanuelle, Alice não precisou vender chocolates, mas foi instruída desde cedo sobre o valor do dinheiro.
“Quando eu era criança lembro que meu pai passava o dia fora, trabalhava em vários lugares para conseguir trazer o que podia para casa. E por mais que ele pudesse proporcionar para gente o máximo que podia, ele não queria que perdêssemos a cabeça com isso e entendêssemos de onde vinha o dinheiro e como deveríamos usá-lo. Painho nos dava mesada e ensinava as lições das caixinhas do Ontem, do Hoje e do Amanhã”, explica. “A caixinha do Ontem, que é para pagar as contas, eu ainda não a tenho. Então eu a uso para guardar essa reserva para fazer meus investimentos”, cita.
Ela cita que os ensinamentos obtidos com educação financeira reverberam até hoje e afirma que tem iniciado investimentos como forma de ampliar seus rendimentos. Os produtos preferidos e analisados são fundos imobiliários, criptomoedas e até compra de dólares.
“Estou começando, não tenho muita experiência porque colocar seu dinheiro suado em algo é uma questão que você analisa com tempo e cuidado. Prefiro estudar antes”, diz. “Alguns amigos não têm essa educação financeira como tive, então lidei com muitas coisas, como amigos gastando com coisas supérfluas e gastando mais até do que eles tinham. Tem amigos, da minha idade, com dívidas no cartão do pai. Sempre agradeço a meu pai por ter me ensinado a usar o meu dinheiro”, finaliza.
Número de jovens brasileiros na Bolsa cresce mais de 440%
Segundo analistas e especialistas do mercado financeiro, os brasileiros estão passando a ter mais cuidado com as finanças e com seus recursos. Quanto se trata de crianças e adolescentes com menos de 18 anos, o aumento é expressivo: o salto foi de 9.099 investidores em dezembro de 2019 para 49.353 em novembro de 2024.
Entre dezembro de 2019 e de 2020, o crescimento já foi de mais de 50% e só evoluiu: em 2020, 20.267 eram os registros na B3, saltando para 31.636 em 2021, 38.361 em 2022 e os expressivos 45.928 em dezembro de 2023. Para Larissa Frias, planejadora financeira do C6 Bank, esse aumento, considerado positivo, pode estar associado a uma mudança de comportamento dos jovens brasileiros.
“Há uma mudança de comportamento dos jovens em relação ao próprio dinheiro, desde hábitos de consumo como a priorização para o ato de poupar dinheiro. Hoje, observamos o jovem mais preocupado em evitar gastos desnecessários, em priorizar a reserva, construir as caixinhas de investimento e portfólio e mais antenado a opções de investimentos”, explica.
A planejadora financeira do C6 Bank, Larissa Frias, cita ainda que as redes sociais têm um lado positivo nessa busca dos jovens para um olhar mais cuidadoso com as finanças. “Conseguimos observar isso nas redes sociais também. Com acesso mais fácil a tudo praticamente, os investimentos ganham espaço relevante quando falamos de mídia de forma geral. Boa parte dos influencers digitais são do meio de investimentos e cada vez observamos influencers desse mundo mais jovens e isso naturalmente traz uma identificação para que cada vez mais jovens se tornem investidores e procurem ter esse hábito”, relata.
Que tal, um cofrinho transparente para seu filho?
E que tal um cofrinho transparente para que seu filho tenha noção da evolução de suas economias? Essa alternativa é um bom começo para motivar a criança a poupar e construir um aprendizado financeiro, mas também é importante estabelecer um objetivo para poupar. É a dica que a assessora de investimentos da XP, Wanádia Martins, dá a partir de uma experiência pessoal. Ela deixou de lado os cofrinhos de metal, de cerâmica, e presenteou a filha, que hoje tem 8 anos, com um cofrinho de acrílico.
“Nesses cofrinhos tradicionais, a criança não consegue ver como aquilo está evoluindo. No cofre transparente, ela consegue ver quantas moedinhas têm lá, a evolução a cada dia, e notei que aquilo a incentivava muito”, diz a assessora. É algo que, ao conversar com outros pais, ela sempre ressalta. “É importante porque a criança vai poder ver o volume do dinheiro aumentando”, completa Wanádia Martins.
Outro ponto importante na jornada da educação financeira, destaca a assessoria de investimentos, é estabelecer uma meta. “Incentivar uma economia não é só dar moedas ao filho e largar em um cofrinho, tem sempre que conversar, que falar o motivo. Não faz sentido só guardar dinheiro, tem que ter um objetivo final. Se não faz isso, pode ser que, no meio do caminho, a criança pense que não vale a pena poupar, se a mãe ou o pai não deixam gastar”, reforça. A criança, diz ela, precisa saber que tem uma meta e que, ao atingi-la, vai poder usar o dinheiro.
Wanádia Martins explica que não há uma idade específica para iniciar o aprendizado sobre finanças. “Costumo dizer que não tem uma faixa ideal, o começo pode ser com a criança que já consegue falar, compreender e, é sempre fundamental, os pais entenderem a importância de dar exemplos. Os pais vão ser a referência daquela criança mesmo logo no início e depois”, diz.
Mesada como aliada
A mesada ou semanada pode ser outro bom caminho para educar financeiramente os filhos, mas exige regras e acompanhamento. Para disponibilizar para a criança um valor, seja mensal ou semanal, sugere a assessora, é importante atrelar isso a boas notas, a um rendimento legal na escola, a um bom comportamento em casa, a fazer tarefas. “Por exemplo, estabeleça que ele, ao acordar e arrumar a cama, vai ter a semanada, mas também se esquecer de fazer essa tarefa, vai ter uma redução no valor. Você pode utilizar a semanada para poder agregar no comportamento da criança, seja pessoal ou no desempenho escolar”, orienta.
Wanádia Martins alerta que os pais precisam conversar mais com os filhos sobre dinheiro. “Eu percebo muito que os pais só falam que não pode comprar isso ou aquilo, mas a explicação não vem junto. Só fala que não pode e pronto. Mas é necessário explicar o porquê, explicar o valor do dinheiro, que precisa trabalhar para poder conseguir conquistar sonhos”, diz ela.
Tribuna do Norte