Profissionais teriam direito à tramitação simplificada, por terem estudado em universidades que fazem parte de lista especial do Mercosul
Quando decidiu cursar Medicina no Paraguai, em 2017, o fisioterapeuta Thiago Ribeiro, 34 anos, ainda não sabia muito sobre a chamada revalidação simplificada – uma alternativa para tornar seu diploma válido no Brasil por estudar em universidade cuja qualidade é atestada pelo Mercosul. Isso era possível justamente porque a instituição onde estudou faz parte do Arcu-Sul, um sistema de acreditação do qual o governo brasileiro é signatário.
No entanto, hoje, já formado médico pela Universidade Maria Auxiliadora (Umax), em Assunção, ele se deparou com um contexto em que essa forma de validação praticamente não existe. Diante desse cenário, Thiago e outros quatro profissionais formados no exterior noticiaram um ato ilícito que teria sido cometido pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) ao Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) – ou seja, fizeram uma espécie de denúncia quanto a uma eventual recusa da instituição em fazer o procedimento.
O MP confirmou à reportagem que tem um procedimento instaurado sobre o tema. Atualmente, o processo está “em fase de coleta de informações para posterior avaliação e tomada das medidas cabíveis”, de acordo com a assessoria do órgão, que não indicou uma fonte para falar sobre o tema. Além da Uneb, Thiago tentou o processo simplificado com as Universidades Federais da Bahia (Ufba) e do Recôncavo da Bahia (UFRB). A alegação mais comum é que as universidades podem se negar com base na autonomia universitária.
“O Brasil não está cumprindo a lei porque os reitores estão fazendo a vontade dos médicos”, critica ele. Em todo o país, apenas duas instituições estão listadas na Plataforma Carolina Bori para fazer a revalidação simplificada. Uma é a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que tem capacidade de avaliar 35 diplomas por vez e tem uma fila de espera de 156 solicitações, e a Universidade Federal de Goiás (UFG), que consegue atender duas revalidações simultâneas e está com uma fila de 455 pedidos atualmente.
A saga dos médicos formados no exterior pela revalidação é só um dos capítulos recentes que têm afetado aqueles que querem conquistar o registro no Conselho Regional de Medicina – o chamado número ‘CRM’. Nas últimas semanas, só na Universidade Federal da Bahia (Ufba), que tem o curso de Medicina mais antigo do país, houve uma polêmica sobre o Bacharelado Interdisciplinar (BI) em Saúde que fez a instituição cogitar tanto a suspensão da entrada de egressos do BI como a redução de vagas ofertadas para o curso no Sistema de Seleção Unificada (Sisu).
“As instituições e o próprio judiciário confundem autonomia com soberania. São palavras parecidas, mas distintas. A autonomia da universidade é didático-científica não legislativa. Ela não pode se contrapor ao que já está legislado”, explica a advogada Ellen Karoline, sócia do escritório Ellen e Pessoa, que é especializado em revalidação de diplomas médicos.
Para quem não tem como pagar por mensalidades que chegam a R$ 13,2 mil em faculdades de Medicina em Salvador, o curso em outros países da América Latina desponta como uma chance de realizar o sonho, além das concorridas vagas em universidades públicas. Em países como Argentina, Paraguai e Bolívia, a mensalidade na graduação tem valores mais atrativos. A depender do país e da instituição, os custos ficam em torno de R$ 500 e R$ 2,5 mil.
Universidade Maria Auxiliadora (Umax) Crédito: Reprodução
Exame
No ano passado, o governo federal divulgou que já tinha revalidado cerca de 12 mil diplomas de médicos formados no exterior. O número de profissionais que busca países como Argentina, Paraguai e Bolívia para estudar Medicina, contudo, é bem maior. Até 2023, havia pelo menos 24 mil médicos formados que tinham feito a prova do Revalida do Inep ao menos uma vez e não atingiram a pontuação mínima.
O índice de aprovação no exame também costuma ser baixo. Em 2022, a prova que aconteceu no segundo semestre teve a menor taxa de aprovação da história do Revalida: apenas 3,7% dos inscritos. A nota mínima para ser aprovado fica em torno de 65%, mas muda a cada edição, sendo que todo o processo leva até 11 meses para ser concluído. O resultado provocou até discussões no Congresso Nacional. Em novembro, em uma audiência pública, senadores defenderam mudanças no exame e questionaram a substituição de pacientes reais por atores ou bonecos.
Há também aqueles que ainda não prestaram o exame. Esse é o caso do médico Thiago Ribeiro, que fez a denúncia ao MP. Ele optou pelo Paraguai após ter tido contato com uma colega no Hospital Regional de Santo Antônio de Jesus que estava indo para o país fazer mestrado, enquanto seus filhos fariam Medicina.
“Lá (no Paraguai), as aulas são da forma tradicional. Ou seja, eu não fiquei no modo PBL (Problem Based Learning). Tinha a aula das 7h até 21h às vezes. Os laboratórios são completos e desde o primeiro dia, já tínhamos contato com vários cadáveres. Tive vivências em mais de 15 hospitais diferentes. Tive uma intensidade e uma rigidez muito grandes ao longo do curso”, lembra Thiago, citando o método PBL (na tradução, Aprendizagem Baseada em Problemas), que tem sido adotado por muitos dos cursos de Medicina no Brasil atualmente.
Quando retornou ao Brasil, já formado, buscou a Uneb (onde cursou Fisioterapia), a Ufba e a UFRB na tentativa de revalidar o diploma de forma simplificada. Em 2024, ele decidiu não tentar a prova do Revalida porque estava focado em estudar para entender a revalidação simplificada. Além disso, os altos custos da prova deixaram difícil para a situação financeira atual. Desde que voltou ao país, Thiago está desempregado. Voltou a morar com os pais e, quando encontra algum trabalho para atuar como fisioterapeuta (sua primeira formação), acaba fazendo.
Para ir atrás da revalidação simplificada, ele se ampara em uma legislação como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que determina que os diplomas de graduação expedidos por universidades estrangeiras serão revalidados por universidades públicas que tenham curso do mesmo nível e área equivalente, respeitando-se os acordos internacionais de reciprocidade ou equiparação.
Outra portaria citada é o documento do Ministério da Educação, de 2023, que indica que a plataforma Carolina Bori, criada pelo órgão com essa finalidade, deve ser o meio pelo qual a revalidação de diplomas estrangeiros será operacionalizada. Há, ainda, uma resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) publicada em 2022 que lista três pontos para a tramitação simplificada: cursos estrangeiros da mesma instituição de origem que já tenham sido objeto de revalidação nos últimos cinco anos e diplomados por graduações do sistema Arcu-Sul teriam esse direito. O texto ainda afirma que a tramitação simplificada deve se ater exclusivamente à verificação da documentação comprobatória da diplomação no curso.
“O Inep faz parte da Rana (Rede de Agências Nacionais de Acreditação) e é o mesmo que faz o Revalida. O Inep atesta a qualidade desses profissionais do Arcu-Sul. Ou seja, eu já sou aprovado pelo Inep”, explica Thiago. “Existe uma lei que diz que os acordos internacionais devem ser respeitados e eles estabelecem a tramitação simplificada. Mas as universidades estão alegando que têm autonomia universitária para não fazer isso, como se fosse maior do que as leis do país”.
Sonho
O drama de Thiago é o mesmo de outros colegas que passaram por cursos do Arcu-Sul. Também médico formado no Paraguai, o baiano Sérgio Freitas, 34, foi para Assunção querendo realizar um sonho que sempre teve, apesar de trabalhar originalmente na área de administração
De acordo com ele, com o diploma da Umax, consegue atuar em oito países – além da América do Sul, também pode atender na Espanha. A restrição é no Brasil. “Tenho vontade de ajudar o meu povo aqui no Brasil, mas existe essa barreira muito grande. A gente sabe que muitos médicos formados aqui não querem ir para o interior, enquanto a gente poderia estar ajudando a comunidade”, diz ele, que mora em Conceição do Jacuípe.
Sérgio prestou o Revalida este ano, mas não passou por meio ponto – atingiu 86, mas a nota de corte foi 86,5. “A gente formou médico e nossos amigos, parentes e vizinhos ficam na expectativa depois de ver todo o nosso sofrimento. Mas a gente fica a mercê”.
Formada em março deste ano, a médica Gabrielle Andrade, 30, também tentou revalidar pela Uneb e recebeu a negativa direta. A instituição alegou que revalida por meio do chamado edital das Uebas (Universidades estaduais da Bahia) e que a plataforma Carolina Bori serve apenas para a pós-graduação.
Gabrielle diz se sentir impotente diante de sua situação. Ela pretende se submeter ao Revalida pelo que entende ser um desrespeito às leis do país. “Não faz sentido eu ter que passar pelo Revalida, pois isso significaria ser duplamente aprovada pelo Inep, tardando meses a minha vida profissional e pagando mais de R$ 5 mil pela prova”.
Já a médica Lorena Lima tentou duas vezes o Revalida do Inep desde 2023. Também formada em Fisioterapia no Brasil, ela tem trabalhado como fisioterapeuta para se manter. “Busquei esse grupo (de médicos formados no exterior) na mesma situação que eu na tentativa de mudar o quadro que vem se apresentando. Me sinto injustiçada, pois foram anos de promessas e ilusões, porém não podemos desistir”, afirma.
Segundo o advogado Dave Prada, professor universitário, mestre em Direito Regulatório e atuante em Direito Educacional há 23 anos, tanto alunos que tenham direito e não estejam conseguindo a tramitação simplificada quanto os casos em que há excessiva demora no trâmite do processo podem buscar a justiça.
“Não vejo ofensa das normas sobre o Revalida frente a autonomia que a Constituição Federal garante às universidades. Há necessidade evidente de normatizar processos e regulamentação do ensino que nem por isso afrontam o direito constitucional”, pondera.
Leis
A Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) considera que o processo de revalidação deve seguir a Lei nº 13.959/2019, que instituiu o Revalida. “Destacamos que as instituições públicas podem aderir ou não ao processo de revalidação simplificada, não havendo obrigatoriedade em participar. A revalidação simplificada é normatizada pelo CNE, na Portaria 1151 de 19/06/2023 e a Lei 13.959 tem superioridade em relação à Portaria 1.151”, pontuam.
Através de um ofício encaminhado ao MP-BA e obtido pelo CORREIO, a Uneb afirma que faz revalidação de diplomas médicos pelo Programa Uebas, que reúne, ainda a Uefs, a Uesb e a Uesc. No entanto, ainda que tenha sido anunciado em 2020, como parte da estratégia estadual para ter mais médicos atuando no combate à pandemia da covid-19. Desde então, não houve editais do projeto.
No documento, a instituição diz também que a plataforma Carolina Bori destina-se ao reconhecimento de diplomas de pós-graduação. Na verdade, a plataforma também é indicada para a graduação, mas a Uneb só aderiu para reconhecimento de diplomas de mestrado e doutorado, de acordo com um ofício assinado pela coordenadora-geral de Assuntos Internacionais da Educação Superior do MEC, Jaqueline Pinheiro Schultz, e obtido pela reportagem.
“(…) As universidades não devem se abster de seguir e cumprir, no mínimo, os padrões dispostos na LDB, na Portaria MEC nº 1.151, de 19 de junho de 2023, e na Resolução CES/CNE nº 1, de 2022, no que concerne aos procedimentos de reconhecimento e revalidação dos diplomas estrangeiros”, escreve a coordenadora-geral, no ofício.
O MEC foi procurado, por meio de sua assessoria, mas não respondeu aos questionamentos até a publicação da reportagem. A Uneb também não emitiu posicionamento. Já a Ufba destacou que a universidade somente aceita solicitação de revalidação de diploma médico se a pessoa tiver sido aprovada no exame Revalida do Inep.
O grupo de médicos formados no exterior que denunciou a Uneb ao MP procurou, também, a Defensoria Pública da Bahia, que informou que o atendimento está em fase preliminar de análise e levantamento de documentação. No momento, ainda não há ação judicial ajuizada e a situação segue em avaliação pela equipe técnica do órgão. A UFRB não se pronunciou.
Dificuldades para revalidar diploma médico são por reserva de mercado, para advogada especialista na área
“O grande problema é a elitização do curso de Medicina. O médico formado no Brasil vai sempre buscar impedimento para os cursos de Medicina por conta da reserva de mercado”. A leitura é da advogada Ellen Karoline, do escritório Ellen e Pessoa, um dos especializados em revalidação de diplomas médicos no Brasil.
De acordo com ela, a Bahia é um dos estados em que a revalidação simplificada mais encontra problemas. “Tem muitas universidades que teriam o potencial de ter diplomas revalidados e a população é carente de médicos, mas as instituições não querem saber disso. Essas revalidações não são de graça, mas preferem não fazer por reserva de mercado”, enfatiza.
Para a advogada, as universidades usam o argumento da autonomia universitária para não seguir o que é estabelecido por acordos internacionais. “Elas sabem que existem critérios a serem observados e não são todas as pessoas que se enquadram para revalidação simplificada. Existe todo um ritual de análise documental e as instituições sabem disso”.
Segundo ela, o único curso que não respeita as resoluções e portarias do Ministério da Educação é o de Medicina. “A Constituição Federal estabelece que as instituições têm autonomia, mas também que a administração pública deve agir de forma isonômica. Não pode tratar cursos de forma diferente”, pontua. É por isso que, por vezes, as universidades até aderem à plataforma Carolina Bori, mas a maioria nunca disponibiliza vagas para revalidar Medicina.
Ellen tem casos de médicos formados no exterior que conseguiram atuar na pandemia da covid-19, por decisão judicial. “Quando passou a pandemia, eles levaram o popular ‘chute na bunda’ e foram escanteados. Eles são médicos enquanto tem emergência e depois não são mais médicos? Isso é para ter um parâmetro da Medicina no Brasil. Por que agora eles não servem mais? Esse é o questionamento que a gente leva para o Judiciário”, explica.
Além disso, não é incomum se deparar com ligações entre políticos e instituições privadas, cujas mensalidades para Medicina são altas. “A gente vive num sistema em que a revalidação de diplomas virou um tabu muito grande. Quando você começa a traçar um mapa mental, começa a perceber que não é sobre autonomia universitária ou sobre interesse público. É sobre interesse econômico”, reforça.