Comunidades rurais do município de Jandaíra, na região do Mato Grande, estão sendo transformadas social, econômica e ambientalmente com o avanço da meliponicultura, atividade que consiste na extração de mel de espécies nativas de abelhas sem ferrão. O movimento é liderado pela Joca – a Associação dos Jovens Agroecologistas Amigos do Cabeço, que existe desde 2008 e é sediada em um povoado que fica a cerca de 10 km do centro do município de Jandaíra.

A meliponicultura é considerada sustentável porque ajuda na preservação do bioma Caatinga e está mudando a realidade econômica e social de famílias da região – que não precisam mais sair do lugar para trabalhar e já faturam com o mel e outros produtos derivados.

A reportagem do AGORA RN visitou Jandaíra nesta semana e conheceu o projeto. Na comunidade do Cabeço, sede da associação que desenvolve a atividade, já é possível notar as mudanças provocadas pela meliponicultura. As áreas verdes estão mais presentes nos locais onde há produção de mel.

Abelhas sem ferrão são típicas de áreas da Caatinga. A espécie mais famosa no RN é a Jandaíra – que, pela forte presença na região, dá até nome ao município potiguar. A preservação dessas abelhas é fundamental para frear o processo de desertificação do bioma – afinal, para que as espécies animais existam, é necessário que elas tenham à disposição plantas do lugar, que elas polinizam.

Fundador da Joca, Francisco Melo Medeiros é nascido e criado no Cabeço. Ele conta que, sem a abelha Jandaíra, automaticamente 10 espécies de plantas deixariam de existir na região. “Por isso, a meliponicultura é também um processo de defesa do território”, observa.

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Armazenamento do mel após extração com bomba de sucção – Foto: Cedida/Joca e José Aldenir/Agora RN

Em Jandaíra, a meliponicultura funciona a várias mãos. Além da sede da associação, no Cabeço, a produção de mel está espalhada em quase 40 estruturas de colmeias instaladas em casas de moradores, em quase todas as sete comunidades rurais do município.

Após receberem capacitação, as próprias famílias fazem o manejo das abelhas e extraem o mel – direcionando para a comercialização, que é feita através da Ybí-ira, uma empresa de impacto socioambiental criada também por Francisco. A Ybí-ira compra o mel dos produtores e direciona para locais de venda em Natal, explicando o valor agregado do produto.

Apolinário Bezerra, um dos moradores contemplados pelo projeto, tem um meliponário instalado em sua casa há mais de cinco anos. Ele conta que a meliponicultura é um importante auxílio na renda da família. Quando o regime de chuvas contribui para uma boa florada – ou seja, quando as abelhas têm à disposição mais flores nas plantas para extrair o néctar que dá origem ao mel –, ele chega a faturar R$ 10 mil em um ano.

Considerando uma média mensal, isso é mais do que o que ele receberia com o Bolsa Família, por exemplo. O valor pode aumentar se ele ampliar o meliponário de sua casa. “E ainda preserva o meio ambiente, né?”, ele reflete.

Entenda mais sobre a produção do mel

O mel produzido a partir das abelhas Jandaíras tem características especiais, a começar pelo sabor inconfundível. A associação Joca explica que isso ocorre porque as abelhas da região têm à disposição um “banquete” diversificado de flores, de onde extraem o néctar. O mel também é mais fluido e mais claro.

Em 2024, Jandaíra produziu cerca de 800 kg do mel de abelhas sem ferrão, o que representa mais de 600 litros. Além disso, o projeto está produzindo licor do mel e geleia de goiaba, utilizando as frutas dos quintais polinizados.

A produção de mel pelas abelhas começa com a coleta do néctar das flores, que é armazenado em seus estômagos e transportado até a colmeia. Lá, o néctar passa por um processo de transformação enzimática, sendo depositado em células de cera. As abelhas então ventilam essas células com as asas para evaporar a umidade, até que o néctar se transforme em mel.

Aqui há uma diferença significativa entre as abelhas com ferrão e sem ferrão (usadas na apicultura). As abelhas sem ferrão têm uma capacidade menor de desidratação do mel, o que faz com que o produto seja mais fluido (com mais água). O tipo de néctar das plantas nativas da região também aprofunda o sabor, que é mais cítrico.

Por fim, as abelhas selam as células com cera, preservando o mel para alimentação da colmeia. No caso das abelhas sem ferrão, esse processo ocorre em estruturas naturais ou em meliponários, e a extração é feita com cuidado, por meio de sucção, para não danificar os ninhos.

Após a extração, o mel passa por um processo de maturação. Ele só fica disponível para consumo e comercialização depois de seis meses. Durante este período, o produto fica na chamada Casa do Mel, no Cabeço.

Como tudo começou

A associação Joca foi fundada por Francisco Melo e um grupo de amigos diante da constatação de que era preciso encontrar uma atividade que garantisse renda às famílias da região e, ao mesmo tempo, contribuísse para mudar a realidade local. Desde os anos 1980, com a derrocada da cultura do algodão, a comunidade vinha sofrendo com a devastação ambiental e a migração de pessoas para outros lugares, em busca de oportunidade.

Após descobrir experiências na Europa, Francisco viu na cultura das abelhas, já tradicional em Jandaíra, a chance da reviravolta. “Há potenciais em todos os espaços. Só precisa ser enxergado pelo coletivo. Foi aí que eu percebi que, em outras partes do mundo, jovens tinham superado as suas dificuldades a partir da valorização da história da cultura, da biodiversidade local e principalmente do saber fazer que as pessoas já tinham”, afirma Francisco.

O passo seguinte foi capacitar a comunidade e mostrar a importância da atividade sustentável e do associativismo. Os moradores foram treinados e aprenderam sobre o processo de criação das abelhas e extração do mel, com foco nas espécies nativas da região, como a Jandaíra.

“Discutimos o formato da associação baseado na agroecologia como ciência para, através da agroecologia, emancipar as pessoas e provocar a força que cada um tinha para mudar a sua realidade. Mostramos que a transformação não chega de fora. A transformação tem que vir de dentro para fora”, declara Francisco.

Depois disso, a associação instalou o projeto Jardins Caatingueiros Melíferos. Áreas degradadas na comunidade do Cabeço receberam o plantio de espécies nativas de vegetação, de modo a garantir alimento para as abelhas sem ferrão. Com isso, o projeto contribui também para a recuperação de áreas da Caatinga.

Em seguida, com apoio de instituições como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e editais de fomento, como da Fundação Banco do Brasil, foi instalado o primeiro meliponário. Desde então, o projeto só tem crescido.

“A primeira coisa que a gente fez foi entender o que era o território e o que era que a gente queria. E a gente entendeu que o que a gente queria não vinha de fora. A gente entendeu que era preciso resgatar a nossa identidade, a nossa história, e potencializar o que a gente já tinha”, acrescenta Francisco da associação Joca.

O que são meliponários

A meliponicultura parte do princípio de ser uma atividade com baixo impacto ambiental (a menos que seja um impacto positivo). Na natureza, as abelhas sem ferrão vivem em troncos de árvores como a umburana. Na meliponicultura, esse ambiente é reproduzido em caixas de madeira chamadas meliponários.

Os meliponários reproduzem o ambiente natural das abelhas. São estruturas em caixas de madeira que simulam o tronco de uma árvore. Essas caixas ficam perto de vegetação nativa, para que as abelhas possam se alimentar e o local possa se regenerar. Dentro dos meliponários, as abelhas produzem o mel, que depois é extraído por bombas de sucção. Isso é feito para não desmanchar os ninhos, que possuem uma sofisticada estrutura natural.

Em Jandaíra, existe um meliponário principal, que fica vizinho à sede da Joca, na comunidade do Cabeço, e meliponários menores, nas casas dos moradores. Nas residências, são instalados “quintais produtivos”, para permitir que as abelhas permaneçam no lugar.

Não há necessidade de usar roupa especial porque as abelhas não têm ferrão. Elas se defendem mordendo, mas o impacto é quase imperceptível para os humanos – a reportagem constatou.

Valor agregado ao mel

O mel das abelhas nativas de Jandaíra é comercializado considerando suas particularidades únicas. Além de ser produto de uma espécie nativa da Caatinga, há o viés da preservação ambiental e da extração cuidadosa. Além disso, existe a conexão entre o produto e o local de origem, que vem sendo transformado com a atividade.

Neste sentido, o mel das abelhas nativas sem ferrão integra a rede Slow Food, um movimento internacional que faz frente ao fast food e prega a sustentabilidade e a cultura alimentar, buscando uma alimentação “boa, limpa e justa” para todos. A ideia é valorizar gastronomia sustentável, ingredientes locais, agroecológicos e produzidos por comunidades tradicionais.

“É o agir local com impacto global. Desde a nossa fundação aqui, na Comunidade do Cabeço, existe essa perspectiva: entender como nossa ação aqui se soma às ações dos outros a nível mundial. O mel foi entrando nessa linha, como um ingrediente de excelência”, registra o fundador da associação.

A partir da interação com o movimento, o mel de Jandaíra chegou à Rede de Ecochefs, da qual participa Alex Atala, um dos principais chefs de cozinha do Brasil. O produto passou, então, a integrar a alta gastronomia, que valoriza produtos que tenham um conceito especial por trás.

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Além do mel, comunidade rural está produzindo geleia de goiaba e licor – Foto: José Aldenir/Agora RN

Apoio técnico e valorização do produto são desafios para expandir meliponicultura no RN

Para o Sebrae-RN, a meliponicultura é mais do que uma fonte de renda: trata-se de um negócio de impacto social, ambiental e econômico. “A meliponicultura tem esse poder de transformação na realidade”, afirma Nilson Dantas, gestor de Apicultura e Meliponicultura da instituição. O trabalho do Sebrae tem focado no fortalecimento de grupos comunitários.

Entre os principais desafios, Nilson Dantas cita a necessidade de que a atividade seja encarada como um verdadeiro negócio e não apenas como hobby, como ainda acontece em muitas regiões. Outro ponto central é fazer com que o valor agregado do mel das abelhas nativas — como o da Jandaíra — seja percebido no mercado.

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Mel de Jandaíra (21)

O Sebrae também atua na ponte entre produtores e chefs de cozinha, buscando sensibilizar o mercado para o valor ambiental e cultural do mel. “A pessoa que vai consumir um prato que tem o mel de Jandaíra como um insumo tem que saber que ali tem uma história. Tem uma pessoa que preservou, uma questão cultural envolvida com aquilo ali”, afirma.

Segundo ele, esse tipo de produto pode beneficiar comunidades inteiras, e a experiência de Jandaíra poderá ser replicada em outras regiões, como o Seridó.

Dantas defende ainda que os produtores recebam pelo serviço ambiental prestado, como já ocorre em iniciativas de crédito de carbono. “A gente defende que o produtor que trabalha na preservação receba por isso. É como o crédito de carbono, por exemplo. Se você preserva uma área, naturalmente você pode receber por isso.”

Como exemplo de projeto já em andamento, ele cita o “Quintais Mendonça”, desenvolvido em parceria com a CPFL Energias e a State Grid, em comunidades indígenas de João Câmara. “Estamos trabalhando lá com 5 famílias com meliponicultura e 25 com apicultura, junto com ações de educação ambiental, coleta seletiva e replantio. A gente está trabalhando agora com a plantação de 2 mil mudas caatingueiras na região”, detalha.

Francisco vê na meliponicultura mais do que uma fonte de renda: um caminho para manter o povo do Cabeço conectado com sua história, seu território e sua autonomia. “Não adiantava vir de fora uma proposta que não dialogasse com a nossa realidade”, afirma.

Ao escolher valorizar o saber local e a biodiversidade da Caatinga, ele acredita que é possível transformar sem destruir. “O que é que precisa para que a vida das pessoas possa melhorar e que ao mesmo tempo preserve o território? A proposta da Joca vem justamente desse ponto.”

Agora RN

Neuropsicopedagoga Janaina Fernandes