Agricultores do município de Serra do Mel, no semiárido do Rio Grande do Norte, estão processando a empresa Voltalia, com sede na França, por danos ambientais causados pela instalação de 19 empreendimentos de energia eólica. Eles pedem uma indenização de mais de R$ 100 milhões para melhorias das comunidades, além de outras medidas para reduzir os danos já gerados.
Os moradores cederam áreas para instalação de torres e linhas de transmissão, mas reclamam dos valores pagos abaixo do prometido. Eles também alegam que não foram informados sobre os impactos da atuação da empresa na produção de mel e caju, principais culturas agrícolas da cidade.
“Diziam que não ia impactar nada, que a gente ia ficar com a terra livre. O prejuízo que vivemos não supre as perdas causadas. A sensação é de revolta”, afirma Antônio de Souza Bento, 38, produtor e presidente da Associação de Moradores da Vila Piauí.
Antônio diz que a Voltalia prometeu ganhos entre R$ 4 mil a 5 mil por mês, mas os valores atuais são de, no máximo, R$ 1.500. “Tem gente ganhando 600, 800, 1.000 reais. Sem contar o impacto nos animais, que todos sentiram. As vacas reduziram o leite”, diz.
Segundo ele, no município, são 642 contratos assinados cujos impactos estão sendo questionando. “É um prejuízo incalculável. Eles pagam muito pouco. Pedimos prestação de contas dos valores; nunca fizeram”, afirma.
Além disso, os moradores dizem que nunca se acostumaram com os ruídos das torres. Com a cessão das terras, perderam acesso a benefícios como crédito subsidiado e direito à aposentadoria rural. O combo de problemas teria levado a um “adoecimento” das comunidades, associado ao que chamam de síndrome da turbina eólica.
10 anos da chegada
Serra do Mel tem 13 mil habitantes, segundo o Censo 2022, e 74% deles moram na zona rural. Como o nome sugere, a cidade é conhecida pela forte produção de mel e também pelos cajueiros, que, juntos, geram renda aos camponeses. Somente em 2023, segundo o IBGE, a produção de castanha alcançou 19,5 mil toneladas.
As primeiras licenças prévias para instalação dos parques eólicos foram concedidas em 2015. A partir dali, o projeto de implantação foi sendo apresentado como uma renda extra aos sertanejos. A maioria dos donos de terra firmou contratos de arrendamento de 35 a 50 anos.
Os problemas chamaram atenção da Prefeitura de Serra do Mel, que apoia os afetados pelas torres.
O secretário de Agricultura de Serra do Mel, João Freitas Fernandes, afirma que uma audiência pública sobre o tema, com a presença de deputados estaduais, está marcada para o próximo dia 6.
“Se continuar do jeito que está, Serra do Mel vai ficar deserta e perder a referência do caju e da castanha e produção do mel. É preciso olhar agora para não termos uma cidade empobrecida, em que as pessoas não tenham mais de onde tirar o sustento”, diz.
Segundo ele, o movimento não é contra a produção das energias renováveis, mas pede limites, com regras bem definidas. “Hoje a pessoa perde parte ou toda a propriedade, perde a produção e ganha muito pouco. É preciso fazer uma coisa justa e transparente”, diz João, que também é produtor.
O município conta com 40 empreendimentos eólicos em 13 das 23 vilas existentes em Serra do Mel: 36 deles em operação e quatro, obras.
O secretário ainda compartilha o sentimento de que todos que cederam terras se sentiram enganados.
Quando chegaram, estávamos no período mais triste, de uma grande seca; os cajueiros morrendo. Naquele momento, falaram que ia ocupar uma área só de 50m² da propriedade, que ia ser só uma renda extra. Na necessidade que a gente estava, achava que era ótimo. Mas quando foi avançando, as coisas foram aparecendo. — João Freitas Fernandes
O que diz a ação
Em 21 de maio, advogados do escritório LBS entraram com uma ação civil pública na Justiça estadual cobrando uma indenização de pelo menos R$ 106 milhões de reparação por danos coletivos (equivalente a 7,5% do lucro operacional de 2024).
A ação é assinada pela Fetarn (Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Rio Grande do Norte), CUT-RN (Central Única dos Trabalhadores) e a entidade potiguar SAR (Serviço de Assistência Rural e Urbano). O alvo são as duas empresas do mesmo grupo: a Voltalia Energia do Brasil Ltda. e sua controladora Voltalia S/A.
A ação cita como os cajueiros perderam produtividade após a chegada das eólicas.
Há laudo técnico apontando que a supressão vegetal e poeira quente em Serra do Mel gerada pelo uso de máquinas pesadas queima as flores, cobre as folhas, impede a fotossíntese e afasta polinizadores essenciais. Isso compromete diretamente a formação de frutos e pseudofrutos na área afetada. — Trecho da ação civil pública
Nesse processo, houve também a chamada “fuga das abelhas”, em decorrência da diminuição da flora e pela poluição sonora. “Esse fato é uma das maiores preocupações registradas pelos agricultores”, diz a peça.
Como resultado das eólicas, a área agrícola cultivável caiu de 35 mil hectares, em 2014, para 20 mil, em 2022.
A ação ainda chama atenção para a forma como a Voltalia se instalou, dividindo os empreendimentos por vilas. Isso permitiu licenças prévias, de instalação e de operação de forma fracionada, o que “reduziu artificialmente o porte dos empreendimentos e o potencial poluidor do projeto”.
Segundo os advogados, a situação resultou na ausência de estudos mais detalhados que apontassem com antecedência os danos socioambientais na região.
Por fim, além das indenizações, a ação pede que a Justiça obrigue a Voltalia a adotar medidas mitigadoras e compensatórias para “preservação ambiental e a viabilidade econômica das comunidades locais”, assim como R$ 100 mil a todas as pessoas que comprovarem que são vítimas da síndrome da turbina eólica.
“De 2017 a 2022, houve um aumento de 14.600% no número de diagnósticos de problemas auditivos e perda de audição, distúrbios do sono e transtorno de ansiedade e pânico”, diz a ação, citando que os dados foram retirados do Sisab (Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica), do Ministério da Saúde.
O que diz a empresa
A empresa mandou nota ao UOL sobre a ação:
Sobre o referido processo judicial, a Voltalia declara não ter sido oficialmente notificada. A empresa reforça que cumpre rigorosamente a legislação brasileira e adota as melhores práticas do setor, com um processo de construção contratual coletivo, participativo e transparente, além de um compromisso contínuo com o desenvolvimento social das comunidades nas áreas de atuação de seus projetos.
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